Manuel Vicente Faria
O animador cultural
que marcou o século XX
em Alfândega da Fé
PARTE II
4-A revista e o teatro como crítica social
A revista “Ao de Leve” no contexto da época
Em Julho de 1939 o jornal “Trás-os-Montes” trazia uma notícia assinada pelo professor João Baptista Vilares que aqui transcrevemos na íntegra, por nos parecer que se trata de um importante documento acerca do impacto que a actividade cultural desenvolvida pelo Dr. Faria teve na sociedade Alfandeguense.
Recorde-se, a propósito, que os artigos de João Baptista Vilares sobre o que se passava na sede do concelho são muito raros, comparados com as muitas dezenas de escritos dispersos em vários jornais sobre as mais pequenas coisas do que se passava em Sambade, sua terra natal e a maior aldeia do concelho, que chegou mesmo a rivalizar em grandeza com a vila.
Mas vamos então ao referido artigo, que diz o seguinte:
“Alfândega da Fé
Uma revista de teatro em cena – para fins beneficentes
Num curto espaço de tempo, esta vila viu à luz da ribalta duas revistas de crítica e costumes locais: uma, de teatro infantil que, dado o seu brilhantismo, provocou neste meio tal entusiasmo que certamente deu origem a esta segunda agora levada à cena, que acabamos de assistir.
«Ao de leve» é o seu título. Ao subir o pano, logo no primeiro acto, temos imediatamente a impressão, pelos cenários, figurado e guarda-roupa, de que foram transportados à plateia dum teatro de cidade importante.
Marte, desempenho perfeito, está bem assistido: Nuvens – belo friso de lindas Alfandeguenses; Raios de Vulcano muito seguro do seu papel e num à vontade completo. Orquestra boa e segura.
No 2º acto não há escolha a fazer, tal o óptimo desempenho de todos os personagens, mas o Zé-da-má-língua, o Alfarrabista, o dr. Ginja e Menina Rodiófila são números que ficariam muito bem em qualquer revista do «Maria Vitória» ou noutro teatro do género. Vozes afinadas, bela música.
O 3º acto tem movimento e cor local. Muito bem desenhado à vontade, certeza perfeita no jogo cénico e nas danças, banzé em que os Guardas que pareciam de verdade fizeram boa figura.
A crítica às povoações do concelho foi delineada com mestria e as personagens dela encarregadas cumpriram muito bem a sua missão. Destas destacam-se as de Sambade, Soeima, Eucísia, Cerejais, Vilarchão e Parada, sem desprimor para as restantes.
O nº Criadas das pensões perfeito; Câmara muito bem; última hora, verdadeiro ponto final. Apoteose: quadro patriótico, cheio de bairrismo, belo e comovente!
Ao de leve tocamos nós na linda revista, porque o espaço de que dispomos neste jornal é pouquíssimo. Quiséramos trazer para aqui todos os nomes das actrizes e actores – a elite Alfandeguense – mas são tantos, e tão bem se comportaram no brilhantismo que deram à revista, que resolvemos não o fazer. Que seja perdoada esta falta ao rabiscador, como a estulta lembrança de querer fazer crítica à «Ao de leve», que ficará como uma das maiores afirmações de teatro de grande parte das vilas de Trás-os-Montes.
E ao seu autor – Dr. Manuel Vicente Faria – único nome que destacamos – desculpado nos seja o facto – efusivos parabéns."
Parece não haver dúvidas de que a revista “Ao de Leve” é um original do Dr. Faria. Resta saber se foi totalmente escrito já depois de estar em Alfândega da Fé e nesse caso é ainda mais extraordinário perceber quão pouco tempo necessitou para “assimilar” a realidade local, ou se o enredo foi adaptado a algo que ele já tinha escrito.
As pessoas com quem conversámos também não conseguiram tirar-nos algumas dúvidas acerca das datas fundamentais para perceber as razões que levaram o Dr. Faria a escrever este texto. Em nosso entender, a escrita, propriamente dita, é da sua autoria, mas as ideias e alguns factos da vida local devem ter resultado da colaboração de outras pessoas, nomeadamente de João de Campos.
Em nosso entender o engano está em considerar que ele veio para Alfândega da Fé em 1939, o que não corresponde à verdade. Nesse ano tomou posse como Notário, mas antes disso exerceu as funções de Subdelegado do Procurador da República como se pode ver no documento de 1938, de que se apresenta foto.
Que a revista “Ao de Leve” se reporta a realidades de Alfândega da Fé, não subsistem dúvidas. Algumas pessoas são mencionadas pelo nome próprio, muito embora, na generalidade, esse tipo de alusão tenha sido camuflado com nomes inventados.
Veja-se esta passagem, a propósito do sistema de saúde da localidade, uma crítica muito mordaz aos médicos locais… O excerto é um pouco longo, mas não vemos forma de demonstrar o que pretendemos dizer sem fazer recurso a este método, a não ser que incluíssemos neste trabalho um anexo com todo o texto, o que seria ainda menos prático.
(Revista “Ao de Leve”, II Acto, cena V)
“DOENTE
(entrando agarrado à barriga)
-Ainda não há nada como a saúde!
CHICO
-Olha o milagre! Se foi para nos dar essa novidade que cá vieste, podes ir bater a outra porta!
DOENTE
-Por amor de Deus deixem-me descansar aqui um bocadinho!
MARTE
-Vá ao médico!
DOENTE
-Ao médico? Não me fale nessa ralé! È a pior canalha que pode haver!
CHICO
(aparte)
-Fala muito alto e verás como vais direitinho ao hotel do Sabino!
MARTE
-Mas por que estás assim tão zangado com os médicos?
DOENTE
-Porque me revolta o desprezo que eles têm pela saúde dos doentes!
MARTE
-Não compreendo!
DOENTE
-Não compreende? Pois vai compreender! Vai a gente a um que anda sempre muito atarefado, muito mexido, a correr de um lado para outro, para convencer o pagode que se farta de trabalhar e quando lá está a estudar o código das estradas ou a concertar algum relógio, fazendo assim ao Alípio uma concorrência desleal!
CHICO
-Não lhe conhecia essa habilidade!
DOENTE
-Tem uma grande vocação para serralheiro! Mas por que quis ser médico? Havia de haver em Portugal um Instituto de Orientação Profissional, onde se descobrissem as tendências naturais dos “cada uns” para evitar o espectáculo vergonhoso de ver serralheiros que são médicos e médicos que são serralheiros! Até já para ser mecânico é preciso ser-se doutor!
CHICO
-Influências do Beltrão!
DOENTE
-Que vá para o diabo que o carregue mais o Beltrão! Ele afinal é o chaufeur ou é médico?
MARTE
Isso é vontade de não prestar homenagem às suas qualidades! Bem vês que enquanto não tirar a carta não descansa!
DOENTE
-Qual quê? Há-de se lhe estragar o Rolls-Roice e ele o mesmo azêlha!
CHICO
-Fosses ao outro!
DOENTE
-Oh! Desse nem me fale! É inconcebível que sendo ele uma pessoa cheia de requisitos para a sua profissão, assim desalmadamente a despreze!
MARTE
-Pois realmente tem tanto valor?
DOENTE
-Tem sim senhor! Olhe que só para uma doença tem ele doze medicamentos! Doze, veja lá! Doze mentiras diferentes de tratar!
MARTE
-Onde foi adquirir tantos conhecimentos?
DOENTE
-Teve um bom professor! Prático, variado e sabedor!
MARTE
-E apesar de tudo isso, recusou-se a atender-te!
DOENTE
-Assim fez o tratante!
MARTE
-Pobre enfermo!
DOENTE
-Mas não fiquei por aqui; ante tal desumanidade, dirigi-me, cheio de esperança ao Dr. Mendes Taranta e supliquei-lhe os seus serviços!
CHICO
-E ele?
DOENTE
-Ele começou para lá a resmungar, a pôr os olhos em alvo, a falar com as paredes, a fazer gestos para os astros, que me pus ao ar fresco não me tivesse ele tomado pelo Miguel Bombarda!
MARTE
-Ficaste então sem assistência médica?
DOENTE
-Não, porque temos ainda, felizmente, o recurso de ir a outro!
CHICO
-Há outro? Mas que eu saiba, cá na terra não há mais médicos!
DOENTE
-Pois sabe muito pouco! Têm aí outro colega que lhes leva a palma em competência e olho clínico!
MARTE
-Quem é esse fenómeno?
DOENTE
-É o Dr. João de Campos, afamado cirurgião de toda a raça animal!”
Note-se a alusão ao Sr. João de Campos, aqui designado por Dr., porque tinha jeito para resolver problemas dos animais utilizados na lavoura (sobretudo cavalos, machos e burros).
Nesta revista, entre a galhofa e o humor escondem-se situações concretas que hoje já não será possível identificar com clareza. Mas o tom de crítica mordaz está no texto, como é o caso desta passagem:
(CENA X)
“ALFARRABISTA
(Entrando)
Quem quer comprar a história de um comerciante que é careca, que não gosta de ser careca e é levadinho da breca p’ra conquistar as raparigas com cantigas mas que coitado, o desgraçado, é sempre tampado e tanta coisa lhe diz, mas a ingratas não têm pena do infeliz? – Quem quer comprar a história de um aldrabão, todo pimpão, que em África viu e descobriu, numa só árvore, alinhadinhos e bem feitinhos, mil e duzentos ninhos de passarinhos e acerca dos quais, o das pacaças, cheio de fumaças, disse que sim, que aquela asneira era verdadeira, confirmando, cheio de ladinice e aldrabice? – Cá está também o caso extraordinário dum cavalheiro, todo brejeiro, que com grande inspiração, duma caixa de macarrão fez, depois de vários tratos, uma máquina de tirar retratos, para intrujar a freguesia que com alegria ao homem ia? – E a história assombrosa de um caçador, todo impostor, que pontaria certeira e fria, que diz com grande lata, que a caça mata de olho fechado, mas que coitado, este caçador cheio de fama, até os coelhos erra na cama? – E a façanha daquele que mal pôs o pé em Alfândega da Fé, começou a pensar que ia casar e, para isso, assim tão magriço, foi com o padrinho, que era um homenzinho engraçadinho, pedir com devoção a excelsa mão duma das muitas que o seu coração amava e queria, e ao ser-lhe dito, com ar esquisito, que não era bonito querer para companheira da sua vida, uma que estava comprometida e até pedida, ele respondeu que como a dita tinha mais manas não fazia questão e ao seu coração que tanto pedia, qualquer lhe servia? – E a história arrepiante dum pobre amante, que cheio de saudade, na soledade do triste quarto, depois de pedir inspiração ao carrascão, assim dizia para a fotografia da namorada muito amada; como és lindinho meu amorzinho! Esquecer-te quem há-de oh! Linda de verdade! “ E depois caía sobre a cama a soluçar que até fazia arrepiar? – Quem quer comprar a história daquela água que umas vezes vem pura e cristalina e outras vezes vem da cor do leite que é quando o Albuquerque vai ordenhar a vaca da coitada? – Quem quer comprar a história dum rapagão, que é um valentão, e p’ra fazer a demonstração até entrou para a legião, que um dia em casa, ao ver um gato muito pacato, que em vez de bufar estava a miar, ficou tão atrapalhado, que coitado, com medo caiu desmaiado? – Também tenho a história dum chaufeur, que alguém quer ser, e por meio tostão comprou a rosca ao capitão, que um dia na estrada que vai para Valverde, quis experimentar e averiguar se os 100 cavalos do bate latas com sua patas e de alma fula tinham mais força que uma mula e que por sinal matou o animal e a quem a brincadeira custou a carteira e que por uma palhinha lá ia deixando também a vidinha? – E como não há quem mais me peça, vou-me embora que estou com pressa! (sai).”
Esta passagem encerra um conjunto de histórias de maldizer e o próprio texto tem alguma rima, recordando as quadras que nesta terra se faziam por altura do Entrudo e que se destinavam exactamente a criticar este tipo de situações ocorridas ao longo do ano anterior.
As alusões directas a pessoas e situações concretas da vida de Alfândega da Fé são muitas, algumas delas de forma muito directa. Não sabemos como terão reagido os visados, nem sequer se assistiram à apresentação da revista. Passemos outro excerto do texto, agora uma crítica à Empresa Alfandeguense, supomos que a primeira empresa de transportes públicos do distrito de Bragança, fundada em 1921.
(Cena XVI)
“MARTE
(olhando também)
-Que casarão é aquele que se vê daqui?
CHICO
(olhando também)
-Aonde? Além? É a maior casa de comércio cá da terra; a Empresa Alfandeguense limitada, proprietária das camionetas encarnadas e do automóvel que só faz fretes a 1$50 o quilómetro! E é para quem quer!
MARTE
-Mas isso é uma roubalheira!
CHICO
-Meu caro, temos de os gramar! Foi implantada a ditadura dos fretes!”
O texto desta revista merece, de facto, uma análise mais cuidada e exaustiva que não cabe neste texto, uma vez que a intenção é apenas demonstrar que o Dr. Faria o utilizou para criticar a sociedade Alfandeguense, o marasmo que a caracterizava, os abusos de alguns senhores e até para fazer sugestões. Terminemos com mais uma transcrição do texto, onde estes aspectos são mesmo evidentes, mesmo que para quem lê hoje os assuntos possam não dizer grande coisa:
(III Acto, cena III)
“RESSUSCITADO
(Entrando)
-Vamos a isso! Não há tempo a perder! É preciso trabalhar! Sr. Mário Sá, deixe-se de reumatismos e enxaquecas e vamos à vida! Dr. Varela, novo Bocage de inspiradas rimas, deixemo-nos de versos e larachas! Zé João! É preciso deixar a barriga em casa e andar ligeiro! Albuquerque, meu braço direito, vê se entras também na linha porque senão comes!
MARTE
-Que esplêndidas maneiras de chefe!
CHICO
-Que energia, que modos!
RESSUSCITADO
-Este jardim precisa de ser arranjado! Abaixo com o empecilho da casa do Mário d’Almeida! O Pimenta que vá apimentar os fregueses para outro sítio, que ali não pode continuar! Fora da Praça com os Castros! O terreno junto ao celeiro, expropria-se! A Empresa deixem-na ficar, para manter a nobre tradição da terra! Sr. Carolino Urze, corte uma lasca ao lagar e dê-lhe o alinhamento necessário!
MARTE
-Que admirável actividade!
CHICO
-Que decisão, que largueza de vistas!
RESSUSCITADO
-Jeremias, entrego-te os bombeiros, mas tem cuidado, não dês com eles em droga! Tu, Repolho, mete-me essa música nos eixos se não queres passar de Repolho a Couve-flor! E vós, lá do clube, tenham coragem, mas não contem comigo para o frequentar por causa das moscas! Sr. Porto a legião que dê o exemplo e tome cuidado porque qualquer dia ver-me-ei na necessidade de ir comandar os comandantes que comandam a Legião que já são mais que as mães!
MARTE
-É gosto ouvi-lo!
CHICO
-Que homem, que têmpera!
RESSUSCITADO
-Haja cuidado com os novos passeios da rua do Privilégio para não desgostar o João de Campos e o barbeiro que são dois rapazes às direitas! As ruas que sejam calcetadas quanto antes! A planta de urbanização da Praça que vá para o caixote do lixo! Vamos aos esgotos senão daqui a pouco nem todas as reservas da Natally nos valem! Fica sendo obrigatório fazer as baixadas em todas as casas daqueles que no cadastro figuram como proprietários, senão dão com a Câmara em pantanas.
MARTE
-Chico estou a ver que tenho de levar este homem comigo!
CHICO
-Vossa Majestade faça-nos tudo menos isso!
RESSUSCITADO
-O hospital que seja o nosso orgulho, ouviu Sr. Dr. Miranda? Albuquerque, atenção e cuidado com a Sopa dos Pobres! É proibida a pedincha nas ruas e o estacionamento de ciganos para evitar a epidemia das pulgas e dos piolhos! Construam-se o gradeamento e as escadas em frente do edifício da Câmara! Ernesto, quero que passe a fazer o policiamento das ruas, para dar caça aos desordeiros e borrachos! Alípio, deixa-te de retratos, pois nunca mais me levas no vigário.”
Tentemos aclarar um pouco mais o sentido de alguns dos aspectos referidos nesta última transcrição, para se perceber melhor até que ponto o Dr. Faria levava a sua crítica, sobretudo dirigida às pessoas importantes da terra.
A frase “Albuquerque, meu braço direito, vê se entras também na linha porque senão comes!” dirigia-se ao Secretário da Câmara, não se escondendo sequer o nome próprio. Aliás, esta figura é objecto de outras críticas ao longo do texto, sobretudo por não despachar com a celeridade necessária alguns assuntos do interesse da Vila.
Na segunda fala do “Ressuscitado” incluem-se várias alusões a assuntos ou questões que eram muito faladas na altura. O jardim que precisava de ser arranjado, reportando-se a crítica ao estado em que se encontrava o Jardim Municipal. A questão da “casa do Mário d’Almeida” foi igualmente muito discutida na Vila. Esta casa foi construída em terreno público, numa situação de desavença (uma espécie de medição de forças…) entre o proprietário e o Capitão Mendonça (figura que é várias vezes mencionada na revista e que foi Presidente da Câmara, uma pessoa que não deixou poucas recordações na terra…). O certo é que a construção desta casa limitou muito o espaço de acesso da praça do Município à então rua principal da Vila, conhecida por rua do Centro nesta altura mas que na realidade fora desde tempos antigos a Rua do Lageado. A família dos Castros também não é poupada. Já nessa altura se entendia que a casa que tinham no largo de S. Sebastião deveria ser demolida. Esta casa ainda existe actualmente e continua a ser motivo de discussão na terra! O alinhamento que se pretendia no lagar do Sr. Carolino Urze nunca chegou a ser efectuado!
Este lagar situava-se em frente da casa do Dr. Faria, na rua central, exactamente aquela que foi alterada no acesso à Praça do Município com a construção da casa do Sr. Mário d’Almeida. No espaço deste lagar de azeite, que funcionou até ao início da década de oitenta, foi construído um edifício novo, mas sem qualquer alargamento, ou alinhamento, como o que então se reivindicava.
O texto da revista “Ao de Leve” apresenta-se assim como um importante documento de análise da sociedade Alfandeguense nos finais da década de trinta, muito embora hoje seja cada vez mais difícil perceber o significado dos assuntos nela abordados, uma vez que as pessoas que os conheciam foram falecendo. Os entrevistados que conseguimos para este trabalho eram então demasiado jovens, pelo que nem sempre conseguem explicar o real sentido destas críticas, ou apenas chamadas de atenção, como esta dirigida ao mestre da banda, cuja alcunha era o “Repolho” (na realidade Francisco Maria Cordeiro, um dos republicanos que assinou o Auto de Proclamação da República em 1910): “Tu, Repolho, mete-me essa música nos eixos, se não queres passar de Repolho a Couve-flor!”
Não sabemos qual era a banda que aqui se refere. Nesta época parece que só existia a da Legião Portuguesa. Mas antes deste tempo supõe-se que existiram duas, a Progressista e a Ratambona.
O mais interessante, e este dado parece-nos muito interessante, é que apesar das críticas, muitos dos visados faziam parte do elenco da revista, como o Dr. Miranda, Dr. Carlos Figueiredo, Mário Almeida e até o Dr. António Zilhão, que fazia de ponto!
5-Outros textos do Dr. Faria
A revista “Ao de Leve” pode ser o mais importante trabalho escrito do Dr. Faria, mas não foi o único.
A adaptação a teatro de “As Pupilas do Sr. Reitor” foi outra das grandes iniciativas do Dr. Faria, embora apresentada muito mais tarde, em 1950.
De resto, é sobretudo da apresentação desta peça que muitas das pessoas que entrevistámos se recordam. “«Pupilas do Senhor Reitor», foi uma peça de teatro das várias que se fizeram, essa peça aqui em Alfandega teve um sucesso de tal ordem que até foram dar espectáculo para Mirandela e Vila Flor,(…) diz Manuel Cordeiro. Conceição Trigo recorda que fez os cenários para esta peça, “que por acaso até ficaram muito bons.” Horácio Pires faz uma alusão clara à adaptação do texto de Júlio Dinis para o teatro, também com um cheirinho de revista: “as músicas das Pupilas do Sr. Reitor, ele arranjou músicas adaptadas à peça, tinha pessoas que tocavam, que ajudaram a fazer uma orquestra pobrezinha.”
Para além desta importante adaptação ao teatro, são conhecidos mais três textos, supomos que também originais: “Depois do Cortejo de Oferendas”, assim é o título que nos chegou, “Bento o Africanista” e um outro texto sem título. Obras suficientes para merecerem um estudo mais atento e que, de qualquer forma, mostram a importância e a dinâmica cultural do Dr. Faria, que não se confinou às peças de teatro, ou de revista, como veremos de seguida.
A organização de Cortejos como meio de apoio à construção de obras de interesse público
O Cortejo de Oferendas em favor do Hospital
O Dr. Faria interessou-se particularmente pela construção do Quartel dos Bombeiros Voluntários e pela reconstrução, ou mais correctamente, ampliação, do Hospital da Santa Casa da Misericórdia.
Estas duas questões aparecem logo na revista “Ao de Leve”, como pode ver-se pelas passagens “Jeremias entrego-te os bombeiros, mas tem cuidado não dês com eles em droga!” e “O hospital que seja o nosso orgulho, ouviu Sr. Dr. Miranda”, dirigidas a duas figuras igualmente importantes de Alfândega da Fé, Jeremias Ferreira, que foi durante décadas Comandante dos Bombeiros Voluntários de Alfândega da Fé e uma figura destacada da Liga dos Bombeiros Portugueses e ao Dr. Mário Miranda, um médico que trabalhou no concelho durante décadas, um verdadeiro “João Semana” da medicina.
O Hospital da vila começou a ser construído no início do ano de 1929, conforme nos diz o professor João Vilares numa notícia publicada no jornal Trás-os-Montes, em 15 de Janeiro de 1929, de que extraímos o seguinte excerto: “Anda a construir-se um edifício para instalar o hospital do Concelho de Alfandega da Fé. A ideia vem de há anos. Por meio de receitas teatrais e outros donativos, arranjou-se algum capital (…) Um hospital é um dos grandes melhoramentos dum concelho, mas é preciso muito dinheiro para o manter. A terra Alfandeguense é pequena em área, mas felizmente tem recursos, -fortunas avultadas que muito podem fazer em benefício da grande obra”
Em 15-11-48, uma notícia de Sambade, no Jornal Terras Bragançanas, diz o seguinte: “No cortejo de oferendas que no dia 8 do corrente se efectuou a favor do Hospital da Misericórdia de Alfandega da Fé, esta freguesia foi um das que mais brilhantemente se comportaram.
Tomou parte nele a banda de musica da Casa do Povo, um rancho folclórico composto por 40 pares, levando cada rapaz e cada rapariga uma bandeira com uma quadra popular alusiva ao acto e no meio de uma nota de 50$00, além doutras ofertas. O conjunto deste numeroso grupo com os seus cantares, produzia um efeito maravilhoso. Atrás dele seguiam 30 carros de géneros diversos: cereal, batatas, um bidom de azeite, uma pipa de vinho, lenha e até um carro conduzindo um porco vivo. (…) O rendimento das ofertas desta freguesia deve ter sido além de 20 contos, pois só o importante proprietário, Sr. Mário Pimentel contribuiu com 10 contos em género e em dinheiro.”
Este cortejo destinou-se à angariação de fundos para fazer obras de ampliação no Hospital e envolveu todas as freguesias do concelho. Através da notícia acima transcrita podemos imaginar o impacto que esta iniciativa teve no concelho e a capacidade do Dr. Faria para organizar uma iniciativa de tão grande dimensão. As contradanças destes cortejos eram ensaiadas na “casa dele que era muito grande e tinha um terraço na parte de trás”, como refere Horácio Pires.
O cortejo de oferendas deu origem a vários hinos dedicados às zonas mais importantes da Vila.
A recolha destes hinos está efectuada, também com o propósito de um dia se proceder à sua publicação e até edição áudio. Por agora deixamos apenas o texto do Hino de Alfândega da Fé, cuja melodia foi, como os restantes, organizada com o ritmo das marchas lisboetas.
HINO DE ALFÂNDEGA DA FÉ
Nobre vila aos pergaminhos
Da tua excelsa nobreza
Podes juntar-te orgulhosa
Tendo do bem a riqueza.
Todos unidos, avante
Vê-de se há mais belo ideal
Se cantar o pranto a quem chora
É banir da terra o mal.
Ó que rosários infindáveis
De Avé-Marias, Pai Nossos
Nos olhos dos pobrezinhos
Beijando de longe os nossos.
Viva a jornada do bem
Que em prol da pobreza é
Viva a nossa linda festa
Viva Alfândega da Fé.
6-A construção do Quartel dos Bombeiros
O Dr. Faria fez da construção de um edifício com condições para as actividades culturais um dos objectivos de toda a sua actividade. Mas as dificuldades financeiras para concretizar aquela ideia acabaram por ditar que se lhe juntasse a do Quartel dos Bombeiros Voluntários, que já então existiam, mas praticamente não tinham um local onde guardar os parcos equipamentos que possuiam. O dinheiro não veio apenas através da organização de contradanças ou cortejos. As receitas dos teatros, nomeadamente de “As Pupilas do Sr. Reitor”, reverteram para este fim, como recorda Manuel Cordeiro: “Não havia cá bombeiros na altura, isto foi para a construção dos bombeiros, foi para o que a gente trabalhou e fizemos as Pupilas do Sr. Reitor, depois fomos a Mirandela e a Vila Flor dar o espectáculo (…)”
Manuel Cordeiro, que também ele viria a ser Comandante dos Bombeiros Voluntários, sucedendo a Jeremias Ferreira, referindo-se à situação daquele tempo acrescenta ainda que “(…)isto praticamente era uma vila muito pequena e aqui tudo o que se fazia na altura quase era ligado à parte dos bombeiros, porque ajudando os bombeiros ajudava-se Alfandega. Realmente a juventude quase se juntava toda nos bombeiros, toda a gente procurava auxiliar os bombeiros, foi nessa altura que se começaram a construir os bombeiros e todo o edifício foi feito por gente de Alfandega e começou precisamente com as iniciativas do Dr. Faria.”
Tentemos esclarecer um pouco esta parte da história dos Bombeiros Voluntários. A Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Alfândega da Fé havia sido fundada na década de 20. Durante muitos anos não existiu verdadeiramente um quartel, e este movimento conheceu várias instalações, todas elas muito pequenas e sem condições, como explica Armando Almeida: “Era na rua de cima, [hoje rua Francisco Maria Cordeiro] ao pé do Rego. (…) foi o Carolino Urze que fundou, foi o primeiro Comandante, depois vieram aqui para baixo para onde era a tasca da Chiquinha que é hoje da Dona Alice, [hoje rua S. João] aquilo até era muito pequeno, não tinha qualquer tipo de condições e então ele [Dr. Faria] sonhou fazer-lhes os bombeiros, arranjaram o lugar, a Câmara disponibilizou o lugar mas dinheiros não havia (…)”.
No entanto, a construção do novo quartel dos Bombeiros Voluntários não foi tarefa fácil, até porque o Dr. Faria, para além de pretender melhorar as condições da corporação, tinha um outro objectivo, talvez até mais importante e a verdadeira razão desta obra, como destaca Horácio Pires, que acompanhou muito de perto todo este processo.
“Uma das coisas que ele pretendia era arranjar uma casa de espectáculos, que nós não tínhamos, então ele conseguiu que uma boa parte das oferendas fosse para a construção desse edifício que era para a casa dos espectáculos (…)”
Na verdade, uma das razões que explicam a dificuldade da concretização desta obra prende-se com o facto de ela incluir um enorme salão de espectáculos, com um palco de dimensões apreciáveis para a época (tinha até espaço para o ponto, compartimentos anexos que serviam de camarins e já com instalações sanitárias). O salão dos Bombeiros, como era conhecido, tinha ainda espaço para bilheteiras, sanitários para os espectadores e até um balcão. Chegaram a realizar-se ali espectáculos com meio milhar de pessoas a assistir!
Os custos da obra não permitiram a sua conclusão tão cedo quanto o Dr. Faria pretendia, como refere ainda Horácio Pires: “(…) conseguiu apenas fazer os alicerces, um bocado de parede de um dos lados, três ou quatro metros mais ou menos, depois teve que abandonar porque faltou a receita. Ficou assim abandonado até que a Câmara o concedeu para os bombeiros e fiquei com o encargo de conseguir completar a obra, com muitas dificuldades, mas conseguimos de facto. Continuámos a casa, fechamos o telhado e as portas e ficou mais ou menos a poder utilizar-se, não ficou completamente perfeita mas por fim conseguiu acabar-se, embora na fase final já não tenha sido eu”.
Apesar de as entrevistas não serem muito explícitas sobre o assunto, vale a pena prestar especial atenção a esta última citação, na qual se sugere que a obra terá começado apenas com objectivos culturais e só depois a Câmara a terá entregue aos Bombeiros, tendo sido concluída já com as duas finalidades, casa de espectáculos e quartel dos Bombeiros. Esta questão fica reforçada se atentarmos no facto de que o terreno foi cedido pela Câmara Municipal e nunca foi posto em nome da Associação dos Bombeiros, o mesmo acontecendo com o edifício, de tal forma que há poucos anos, quando foi demolido para ali se construir a actual Casa da Cultura, a propriedade continuava a ser da Câmara Municipal.
Independentemente destes pormenores, o certo é que a construção daquele edifício foi ideia do Dr. Faria, que não se limitou a contribuir com as suas iniciativas culturais, mas acabou por se transformar em obra do povo, ou seja, feita com um pouco de esforço e sacrifício de quase todas as famílias da Vila e até de outras freguesias do concelho.
7-O contexto sociocultural da actualidade
A vila de Alfândega da Fé e o seu concelho apresentam hoje uma grande evolução em relação aos anos 30 e 40 do século passado sobretudo no que respeita a infra-estruturas básicas e de desenvolvimento económico.
Muito embora a principal riqueza do concelho continue a ser a agricultura, a sede do concelho ganhou alguma urbanidade e o que impera são os serviços, o comércio e as pequenas indústrias.
Do ponto de vista cultural as transformações também foram significativas. Pode mesmo dizer-se que apesar de ter havido um grande espaço de tempo entre a acção do Dr. Faria e o início dos anos noventa durante o qual a evolução cultural foi muito reduzida, actualmente Alfândega da Fé é uma terra onde se realizam ou desenvolvem com regularidade várias actividades culturais.
Dos tempos do Dr. Faria ficou o gosto que a população ainda hoje tem pelo teatro e também pela música, muito embora os tempos tenham ditado algumas dificuldades, nomeadamente em relação à continuidade das Bandas Filarmónicas e à regularidade da realização de teatro popular.
Durante décadas mantiveram-se pelo menos as Bandas de Sambade e dos Bombeiros Voluntários, mas no início do século XXI ambas estavam extintas. Valeu a acção da Câmara Municipal, que decidiu juntar os músicos e criar a Banda Municipal que leva já alguns anos de existência e promete continuar a tradição, sobretudo porque se tem verificado alguma adesão dos jovens.
Muito depois do Dr. Faria ainda se manteve a tradição de apresentar pelo menos uma peça de teatro por altura das festas do Mártir S. Sebastião, mas esse hábito acabou no final da década de setenta. De então para cá as experiências de teatro têm sido raras. O teatro passou a ser realizado por companhias profissionais, que vêm de fora.
Das tradições antigas sobreviveram os festejos do Entrudo, que têm ganho força e capacidade de mobilização nos últimos anos e também os Cantares de Reis.
Naturalmente que com a evolução dos tempos e o desenvolvimento de uma cultura democrática e de massas, as actividades começaram a diversificar-se e Alfândega da Fé não deixou de acompanhar esse novo impulso, possivelmente até mais rapidamente do que outras localidades de maior dimensão.
Actualmente existe uma boa Biblioteca Municipal, que desenvolve várias de actividades ao longo do ano e há uns anos entrou em funcionamento a Casa da Cultura, construída no espaço do Salão e Quartel dos Bombeiros Voluntários cuja construção o Dr. Faria iniciou.
O cinema regular e as exposições de pintura e escultura são hoje actividades frequentes a par de um apreciável conjunto de iniciativas ligadas à música popular e ao folclore, com base em grupos locais que se desenvolveram também nos últimos anos.
A animação sociocultural como factor de continuidade – O trabalho do Dr. Faria na actualidade.
Hoje, muitas vezes, o problema da animação sociocultural não reside na falta de meios, mas na falta de pessoas interessadas em dar continuidade às tradições e aos usos e costumes. É certo que a população diminuiu drasticamente, para além de se apresentar muito envelhecida. Estes são factores incontornáveis e que muitas vezes ditam a impossibilidade de desenvolver projectos culturais que envolvam os cidadãos na sua preparação e apresentação. O mais fácil tem sido “comprar” as actividades culturais, apresentando-as como um produto acabado, numa mera perspectiva de consumo.
A política cultural que se espera venha a ser desenvolvida em Alfândega da Fé, com a entrada da Casa da Cultura em funcionamento, não deve excluir, naturalmente, as actividades programadas com entidades exteriores, até porque a Cultura não pode ser um acto de isolamento. Mas deve ter como grande objectivo a dinamização de estruturas locais capazes de produzirem actividades culturais recorrendo às tradições e com o envolvimento das populações, sem cair no equívoco de que, por ser local a cultura não tem de se pautar por normas de rigor. Pior do que não haver actividade cultural é pensar que qualquer coisa serve para cumprir calendários e estatísticas.
Os exemplos que demos, da Banda Municipal, dos Grupos de Cantares e Danças, a divulgação dos escritores e artistas plásticos locais ou ligados ao concelho, inserem-se exactamente neste modelo, mas pode ainda evoluir-se noutras vertentes, como a produção fotográfica e audiovisual.
Nesta perspectiva, dar a conhecer a importância do trabalho cultural desenvolvido pelo Dr. Faria e possivelmente por outras pessoas no resto do concelho (o professor João Vilares, em Sambade, por exemplo) poderá ser um primeiro passo para ganhar de novo o interesse das pessoas, nomeadamente dos mais jovens, criando naturalmente novas forma de desenvolvimento cultural que vão ao encontro dos seus interesses, numa perspectiva de modernidade, o que não excluiu necessariamente a preservação do património cultural mais antigo.
O exemplo do Grupo Orff que funcionou durante quase quatro anos e movimentou mais de centena e meia de jovens que fizeram dezenas de espectáculos dentro e fora do concelho, mostrou que é possível, desde que se mobilizem os meios necessários e haja alguém que assuma o papel de animador cultural. O próprio teatro amador não está posto de parte. Continua a haver gente interessada, falta apenas o “motor”, porque nestas coisas da cultura sempre encontramos alguém que assume a organização e promove o incentivo junto dos outros. Esse foi o principal papel do Dr. Faria há mais de cinquenta anos. É preciso encontrar novos animadores socioculturais, porque o espírito para as actividades continua vivo nas pessoas, como se prova pelas recentes (2003) recordações que foram feitas dos cortejos do tempo do Dr. Faria, nos desfiles do Entrudo de 2003 e 2009.
F. Lopes, 8 de Maio de 2010
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terça-feira, 7 de novembro de 2017
FARIA TEXTOS
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